6/06/2013

Psicologia e esporte


Artista, homem ou atleta-empresa?
Reflexão psicossocial do momento esportivo nacional
*Por João Ricardo Cozac 

O sociólogo francês Sèrge Moscovici, em sua teoria das Representações Sociais, postulou que “a ciência está atrasada diante das demandas do ser humano”. Aquilo que precisamos saber e a ciência não explica – fortalece ainda mais os balcões do senso comum. De fato, o pensamento do autor é congruente com as lacunas da contemporaneidade psicossocial do homem. 

No esporte, esse processo é perversamente verdadeiro. Perverso porque a ciência (Psicossociologia do Esporte) é capaz de produzir alternativas e contribuições fundamentais para a compreensão e prática esportiva. Por outro lado, o ser humano parece não estar preparado para abraçar seus benefícios. Por que? Motivos não faltam: interesses políticos; rigidez e superficial formação dos dirigentes e atletas diante dos aspectos mentais, emocionais e sociais; preconceito; falta de formação de bons profissionais na área; falta de organização e inspeção (além das necessárias punições) diante de atuações desprovidas de ética, cientificidade e conhecimento básico da Psicologia Esportiva. 

Clubes de futebol tem – frequentemente driblado – bem no estilo “jeitinho brasileiro” a multa prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente caso não tenham psicólogos nas categorias de base. Como? Pagando salários vergonhosamente irrisórios para profissionais assinarem o ponto. Deixam claro que o trabalho não precisa ser diário – algo leve e com uma frequência mínima estará suficiente. Pior: há “profissionais” que se sujeitam a esse tipo de situação, manchando da pior maneira possível os passos do crescimento e fortalecimento da Psicologia Esportiva brasileira. 

Além disso, os espetáculos patológicos-esportivos que a televisão não se cansa de mostrar reforçam ainda mais o trágico espetáculo da ignorância humana sob a égide do esporte. Esse TUF, por exemplo, da Rede Globo, é o maior desserviço aos conceitos éticos, sérios, respeitosos e filosóficos que uma modalidade esportiva pode e deve conter. Outro dia assisti um “lutador” (no pior sentido que a palavra pode ter) espalhar suas fezes na parede da casa dos adversários como vingança e provocação. Que tipo de mensagem será passada a um garoto que pretende treinar algum tipo de Arte Marcial? Essa equação funesta vale também para outras modalidades. Um jogador de squash que trabalho relatou que sofreu – de forma proposital – duas boladas atrás da perna de um adversário que, desde o início, se mostrou pessimamente intencionado na partida. Conclusão, o garoto se lesionou e perdeu o título do campeonato. O pai do “agressor” demonstrou um prazer sarcástico diante da “vitória” do filho.

Um triatleta – outro dia, me revelou sua conclusão sobre o assunto “Seleção Brasileira” ao comentar sobre os papéis dos profissionais no futebol – especialmente a do treinador de futebol que trabalha na CBF. Disse o atleta (sem aspas e com todo o meu respeito): “João, não existe treinador na Seleção, por um simples fato: não há treinamento. Ele é apenas um garoto propaganda que veste um uniforme cheio de patrocinadores que pagam seu salário – concede entrevistas, engole sapo, tenta não xingar os repórteres que fazem perguntas imbecis e nada mais” – uma espécie de ator que compõe o midiático espetáculo do antiesporte. 

Diante desse quadro, a necessária indagação de todos aqueles que trabalham pelas ciências humanas esportivas: onde e como habita o lado humano dos atletas? Na opinião de muitos dirigentes – a resposta é tão simples como vazia: na performance e nos títulos. Na visão de estudiosos da realidade psicossocial do esporte bretão – as reflexões são mais profundas, coerentes e necessárias para que os atletas tenham os benefícios que lhes são devidos.

Artistas de filmes de terror? Marionetes movidas pela falsa sensação de poder? Esporte empresa que conduz a que tipo de ganho? Individual, publicitário ou social? Por onde andam os conceitos básicos do esporte e da formação de atleta? 

Os aromas olímpicos ainda vivem – posso atestar, de forma silenciosa e perseverante, nos treinos diários, coerentes e sólidos de seres humanos que vivem a plenitude da identidade de atleta. Não a identidade limitada pelo senso comum banalizada por pseudo-humanistas que se prevalecem do momento atual para compor estudos e teorias que apenas constatam (e até reforçam) a engrenagem da despersonificação e desvalorização da ação esportiva mas, sim, a identidade da força, do orgulho pela legitimidade da escola e, acima de tudo, pela coerência entre o discurso e a ação. 

Ser atleta, hoje, é muito mais que vestir um uniforme cheio de logomarcas. Aliás, incrivelmente, na medida em que os desenhos histericamente coloridos surgiram nas vestimentas esportivas – mais o atleta se distanciou de suas bases e raízes. A maior ironia, no entanto, é que a capitalização do esporte – quando surgiu, prometeu condições melhores e mais dignas aos atletas e equipes. No final das contas, o abismo que foi criado entre essas condições dividiu o universo esportivo social brasileiro no melhor estilo da sociedade econômica egípcia – quando, nas estradas - pelo deserto do Saara transitam – desgovernadamente, carros esportivos valiosos e, logo ali, bem ao lado, camelos caminham lentamente no curso do sol.

João Ricardo Cozac, psicólogo do esporte, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte - vice-presidente da Sociedade Brasileira da Psicologia do Esporte. Membro acadêmico da Academia Brasileira de Marketing Esportivo e do Laboratório de Psicossociologia do Esporte da USP. Atua na área há 20 anos - atende atletas de diversas modalidades e categorias - professor responsável pelo curso de Psicologia do Esporte pela Associação Paulista da Psicologia do Esporte.